[RP FECHADA] Passos lentos

Aalyah definitivamente precisava de um lugar para ficar. Depois de um longo período de discussões e brigas, acabei cedendo a uma trégua e saímos para procurar uma casa, apartamento, hotel, barraca, um não-me-interessa-o-quê para ela ficar, porque definitivamente não será debaixo do mesmo teto que eu. 
Vimos mais lugares do que eu era capaz de saber que estavam disponíveis e nenhum deles agradou Aalyah. Não é preciso frisar que a esta altura, meu humor já não é mais aquela maravilha. 
-Aalyah, não é possível que nenhum desses mil imóveis, nem umzinho deles tenha agradado essa sua frescura! Fique sabendo que se não arrumar um lugar pra ficar, vai dormir na casa do cachorro. 
Observo um sorrisinho irônico se formando nos lábios dela.
-Estou falando sério.
Na verdade eu não estava, não teria essa coragem, o que não quer dizer que eu vá ser tão boazinha assim. Se ela acha que vai dormir na minha cama, é bom saber com antecedência que o mais perto disso que vai chegar é o colchão no chão. Isso se eu colocar um.

Aalyah parecia bem incomodada com minhas roupas e não posso mentir que rolava de rir por dentro cada vez que ela tentava evitar que entrassem entre suas nádegas. O ponto é que ela não iria voltar pra lá agora só por causa de roupas, seria arriscado demais e acabaria entregando onde estamos, embora eu não acredite que estamos tão escondidas assim.  Amanhã, se eu estiver boazinha, busco eu mesma. Aalyah não é a melhor pessoa pra se definir como discreta, ou seja,  o oposto do que eu preciso agora. 
-Não se escolhe um lugar pelas pessoas, eu espero que você saiba. Além do mais, é um ótimo bairro. É seguro, discreto, bonito. Longe o suficiente pra você não seguir meu rastro o dia todo, mas perto o suficiente pra eu saber se não está me aprontando alguma merda. 
Ela não gostou da minha resposta, mas é fato. Ainda estou irritada o bastante com ela para não querer que ela fique na minha cola o dia todo, até porque sua presença mexeu mais do que eu gostaria com meus sentimentos. Eu me recuso a cair nessa conversa depois de tudo o que aconteceu, mas também não tenho a coragem de deixá-la por conta, mesmo sabendo que ela é bem capaz de se defender sozinha. 
-Até podemos, desde que façamos uma pausa pro lanche. Estou mor-ren-do de fome! 
Paro para pensar um pouco sobre o que Aalyah disse e a viro de frente pra mim, encarando-a com a sobrancelha arqueada.
-Aalyah, você nunca foi do tipo "não gosto de luxo". Nunca fez o tipo madame também, mas não me vem com essa que não me engana. Se o problema é o preço, é melhor saber de antemão que pretendo pagar, até porque fui eu quem te meti nessa. E nem é um bairro tão caro assim, está bem longe de ser o "bairro dos ricos e milionários". Lembre-se que você está na Europa. Agora continua calada, porque eu não quero nem saber, e vamos comer. 
Comer deveria ser um emprego. Sou capaz de jurar que é minha atividade favorita. 

-Você tem Londres inteira pra você!
Escuto essa resposta com uma careta. Quando é que Aalyah virou esta sentimental? Acho que perdi mais do que imagino. Enfim, estava cansada de brigar, então deixei o assunto morrer ali.
Sou obrigada a gargalhar diante da ideia de Aalyah de que eu tomaria chá da tarde. Pelos céus, é muito pra minha pessoa, até porque este rolê cultural eu já dei e não foi nem de perto meu favorito. 
-E eu tenho cara de chá da tarde, Aalyah? Pizza é uma boa.
Quando eu penso que realmente paramos pra uma trégua, lá vai ela ficar revoltada porque me ofereci para pagar. Um dia eu vou entender para quê tanta marra em um único ser humano, é de dar nos nervos. Puxei ela de volta pelo cotovelo. 
-Aalyah, olha bem pra mim, mas olhe muito bem. Eu não te perdoei, de verdade, mas eu também estou cansada de brigar, ok? A gente passou o dia nessa briga e eu estou cansada isso. Eu não vou te mandar para a p* que pariu, embora a ideia me agrade, e também não vou te deixar ir pro meio do núcleo mágico dar sopa pra mosca. Admita você ou não, nós duas sabemos que sua escolha não foi cem por cento voluntária. 
Aalyah ficou por esperança e nós duas sabemos. Não há nada de voluntário nisso.Ela estava pronta para retrucar quando fiz um sinal para ela se calar. Uma parte de mim não queria permitir que ela se enfiasse em qualquer lugar, porque isso a faria vulnerável demais pro meu gosto, se algo acontecesse, a culpa ia me corroer sem dúvidas.
-Olha, eu te faço uma proposta então. Eu sei muito bem quanto você ganha e nós duas sabemos que você consegue sim se manter em um bom bairro, mas eu também imagino que seu último salário virou pó por aí por qualquer motivo, então encare como um empréstimo, um presente, como quiser. Eu quero te destruir com as mãos, mas eu tenho senso e essas pessoas são capazes de fazer muito pior do que eu poderia, então tenha dó da minha consciência. Escolha um lugar que te agrade e sossegue aqui por um tempo, até eu resolver isso. E guarda esses peitos, por favor.
Minha blusa estava justa demais no corpo dela, fazendo os seios de Aalyah saltarem pra fora com movimentos exagerados. A deixei para trás, perplexa com a situação, e segui caminhando. 
-Vai ficar pra trás...

Ando alguns bons metros até perceber que Aalyah parou para fumar, sem falar nada. Tão típico dela. Volto nem um pouco pacífica ao seu encontro, mas acato seu pedido. 
- Não tem acordo! E antes que fale aluma coisa, me escuta, por favor.
Como assim não tem acordo? Mas que coisa ridícula! Não custa absolutamente nada aceitar uma ajuda de vez em quando e ela deveria aprender isso. Pelo amor dos deuses!
-Aaly...
Ela me interrompe, desembestando a falar em seguida. "Eu estrago tudo, eu sei me virar..." Conversa típica de Aalyah. Eu ainda a conheço. Aquele olhar era tudo o que eu não precisava ver. Se existe de fato uma situação real em que alguém poderia "quebrar o coração" de alguém, isso aconteceu agora. Pego o cigarro da mão dela e dou uma tragada. Permaneço em silêncio por um tempo. O pior de ser uma pessoa rancorosa é que perdoar não é nada fácil e eu realmente queria ser mais tranquila nesse aspecto, sério. Eu consigo sentir que há verdade em tudo o que ela fala. Estivemos juntas desde a adolescência, sei quando ela mente pra mim, mas não sei se algum dia serei capaz de perdoar o fato de que não signifiquei o suficiente pra ela a ponto de merecer explicações. 
-Você sabe que isso mata, né? - Brinco, tentando mudar o humor da conversa. - Você fica lá em casa então, por uns dias. E se reclamar disso também eu é que vou tomar chá de sumiço, porque haja paciência! Eu prometo tentar ser amigável. E pega outro porque não vou te devolver esse.
Retruco, dando outra tragada no cigarro enquanto me levanto. 
-Vai, criatura, levanta que eu quero comer! Quer me matar de fome por acaso?!

- Tudo bem, mas eu pago a estadia assim que meu pagamento sair e fim de papo. E você não cansar de pegar os meus cigarros não?
-Eu tenho uma ideia melhor de pagamento pra você, mas depois falamos disso. Se eu não comer alguma coisa nos próximos vinte minutos vou cair morta nesse chão. E porquê gastar os meus se os seus estão dando sopa por aí? 
Caminhamos em um clima meio estranho até uma pizzaria cujo nome era bem bizarro. Apesar do nome horrível, o cheiro de pizza era maravilhoso, meus olhos brilharam. Puxei Aalyah porta a dentro e sentei na primeira mesa que vi, fazendo sinal pro garçom. Pedimos as pizzas de sempre, o que era estranhamente confortável e desconfortável ao mesmo tempo. Quase pedi quatro queijos pra contrariar, mas eu realmente queria aquela pizza de marguerita.
Aalyah começa a rir feito uma louca e não consigo conter a curiosidade. Ela fazia sinal para que eu ignorasse, mas era impossível ignorar aquela cena. 
-Lembra quando noivamos e haviam tantos, tantos convidados que você ficou com medo da comida acabar antes de terminar de cumprimentar os convidados e me fez esconder três caixas de pizza embaixo da mesa principal que estava toda adornada? Daí no final da festa, nos pegamos nosso contrabando e fomos comer e beber na varanda e ficamos tão bêbadas naquela noite que amanhecemos no gramado, nem lembro quem nos acordou, mas estava um sol de matar. Bons tempos, Ni...
Foi impossível não começar a rir tão descontroladamente quanto ela estava. Foi uma noite pra se envergonhar, mas também uma das noites mais divertidas que tivemos, embora limpar aquilo tudo no dia seguinte não tenha sido muito legal.
-Meu Deus, que vergonha de mim, sério! A gente ficou tão chapada! Ficamos todas queimadas de sol, você parecia um camarão! Tinha grama no meu cabelo quando acordamos e meio vidro de catchup nas suas roupas, precisei de meio pote de sabão pra lavar aquela porcaria!
Em que momento nossas mãos se juntaram? E por que diabos estamos falando do nosso noivado? Paro de rir abruptamente e puxo minha mão de volta. Aalyah parece ter percebido o mesmo. Um longo período de constrangimento se senta à mesa e nenhuma de nós ousa abrir a boca de novo. 
A pizza chega quebrando nosso silêncio e Aalyah me serve dois pedaços de pizza. 
-Preciso deixar claro que me sinto ofendida por essa alegação, ok? Eu sou uma lady.  
Ela me questiona sobre o que está acontecendo e penso por alguns segundos. Dou uma mordida generosa na fatia e deixo meu pescoço pender para trás em jubilo. 
-O nome é péssimo, mas p* merda, que delícia! 
Vejo um olhar de repreensão no ar e reviro os olhos.
-Tá, tá bom... Pra começo de conversa, é uma roupa muito bonita, só não quer dizer que é adequada pra você. Deve ser, no mínimo, um número menor que o seu corpo. Pense positivo, mostra suas curvas. Quem sabe não arruma um boy magia com ela? - Não posso conter a risada. Ela já sabia que foi de propósito. - Desculpa, vai. Está engraçado.  - Respiro fundo entre uma mordida e outra antes de começar a explicar. - Tem a ver com a história do marido da minha irmã, acredito que saiba bem o que aconteceu. - Começo a desenrolar a meada e narrar tudo o que aconteceu desde que ele foi encontrado. - E agora estou fazendo uma investigação por conta própria. - Sinto um olhar de repreensão vir, então desvio o olhar para o prato. Estava no fim dos últimos pedaços, então pego dois pedaços de pizza de chocolate e ponho no prato. - Tinha um cara nos observando demais e ele tinha um símbolo no braço com o qual já trombei algumas vezes desde que venho investigando. Acho que é o símbolo de alguma tribo, mas não estou certa quando a isso. Enfim, o ponto é que estava fazendo o papel de presa fácil naquele momento então precisava voltar. Satisfeita?

-É isso que você vê?
Analisei o desenho com atenção, puxando a bandeja pra perto. Era isso! Encarei Aalyah com a sobrancelha arqueada.
-O que é que você sabe sobre isso, Aalyah? Aliás, como é que você sabe? Esquece, não fala. 
Encaro o desenho mais uma vez e jogo uma pilha de guardanapos por cima, destruindo a obra de arte pós-moderna de Aalyah. Me levanto da mesa e a puxo para a varanda, onde não havia ninguém além de um casal se pegando. 
-Me dá a sua mão, finja que somos um lindo casal apaixonado nem um pouco suspeito e me conte tudo, não esconda nada ou eu te jogo aqui de cima. - Sussurro, estendendo a mão e abrindo um sorriso mais estranho do que o do Coringa. Eu preciso admitir que talvez fosse um bom disfarce, mas acho que não pensei que eu ficaria tão desconfortável.

Aalyah me abraça por trás e sinto meu corpo inteiro estremecer. Ela começa a sussurrar no meu ouvido e me arrepio automaticamente. Tento passar as mãos sobre os braços para disfarçar, mas estava subitamente apertado demais para se mover. Eu sou péssima mentindo, porque mesmo inventei isso?
-Andikra, essa é a tribo. 
Andikra... não me era um nome totalmente estranho, embora não tenha ideia de quem estamos falando e... Okay, eu posso lidar com um beijo na bochecha, não tenho treze anos. Respiro fundo e coloco minhas mãos casualmente sobre as dela, ou era assim que eu queria que parecesse. 
-Interessante, não sabia desses momentos felizes de pai e filha. Mas falando sério... - Sou interrompida por um beijo, seguido de outro. Me calo, encaro uma sujeirinha na parede atrás dela. Minhas mãos estão ficando frias e úmidas, nada bom. Isso precisa acabar logo porque eu posso ter 70% de certeza de que alguém está abusando dessa situação e não sou eu. 
-E no que é que você andou se metendo para estar na mira deles? Posso saber? -pergunto, tentando soar brava, mas acho que confusa definiria melhor a minha situação. - E o que mais você sabe sobre o assunto? 
Começo a notar que estou parecendo dura demais, nervosa (até porque eu realmente estou). Passo os braços em torno da cintura de Aalyah e sorrio de novo, rezando para ter me saído melhor que da primeira vez. 

Escuto as palavras de Aalyah em silêncio e por um minuto consigo imaginar o que ela quer dizer. Eles sabem que eu me importo. Nessa altura do campeonato, ela mesma sabe. Eu seria presa fácil, se me acham, encontram minha família. Simples assim. 
-Desculpe, é um pouco difícil não ficar. Você sabe que sou uma péssima atriz. - Disfarço, fazendo um carinho de leve em seu rosto. Que é? Eu sei ser grata... - Obrigada, essa informação foi imensamente útil. De verdade. Mas fique fora disso, essa...
Ela me beijou. Com todas as letras e intensidade que um beijo poderia ter. E sabe o que é pior? Eu cedi a mais um beijo. Não foi um beijo de disfarce e eu sei disso, conheço bem Aalyah. Quando dei por mim, minha mão estava firme em seu pescoço e meu corpo entregue em seus braços. Que ideia infeliz a minha!
Aalyah se afasta, pedindo desculpas, mas meu anel estava preso na alça de sua blusa e acabo sendo puxada de volta pra ela antes de quase ir pro chão. Meu consciente queria estapeá-la por aquele beijo, mas meu subconsciente estava perdido em um poço de total inexpressão petrificante. 
-Está bem?
-Estou, foi o... o meu anel. 
Passei algum tempo perdida no tempo-espaço, totalmente fora do ar, brigando comigo mesma e tentando explicar pro imbecil do meu subconsciente que a vida não é um conto de fadas. Escuto Aalyah chamando meu nome e pisco algumas vezes, olhando-a com um ar inegável de confusão.